Nunca liberdade de expressão foi tão bem definida, ainda que involuntariamente, como por Romário, no começo do ano passado.
Respondendo aos conselhos de Pélé, que dizia de boca cheia que Romário se devia retirar do futebol antes de começar a temporada de 2005, com pouco menos de 40 anos o carioca dizia:
O Pelé quando está calado é um poeta. Tinha que colocar um sapato na boca, porque quando ele abre a boca só fala é merda.Claro que Romário, o mais fantástico avançado brasileiro que já vi jogar, acabou o ano de 2005 como melhor marcador do campeonato brasileiro, com 22 golos, a juntar aos seus já de si números incríveis que o fazem ser o terceiro maior marcador de sempre da história do futebol, atrás de Pukas e Pelé. Este ano persegue os 1000 golos na sua carreira. O facto de o conseguir, ou não, é meramente estatístico e irrelevante, o que é interessa é o facto dele perseguir o feito, teimosamente - tal como quando, em 1995 logo que chegou ao Flamengo,
declarou que era o melhor jogador da história do clube, nem que fosse só para irritar o Zico.
Neste caso, chegar aos 1000 golos, nem que seja só para chatear Pelé.
Do Romário, para o Rio, Brasil, até esta
sequência de
posts no
Ondas, vejam os comentários e entendam como às vezes, realmente, deve mesmo ser considerado poesia estar calado.
Do
Ondas para os cartoons de Maomé, não seria melhor os (vamos tomá-los só como) artistas dinamarqueses terem estado calados em vez de produzir merda?
Sim. Talvez. Não. "Seria" é um conceito demasiado vago e que choca com as mais elementares liberdades. Quem diz e define o que "é", ou "o que pode ser"?
Todas as respostas são permitidas, neste caso - dependendo precisamente de como considerarmos os autores dos cartoons - e a sua ingenuidade ou falta dela.
Mas independentemente do que acharmos, da questão de gosto, do tacto, e do contexto, sobra o fundamental direito que toda a gente tem (atenção, não incondicionalmente, porque a democracia não pressupõe que se possa fazer tudo, isso é um embuste) em exprimir-se artisticamente, e claro, de um jornal entender publicar esse material. São várias liberdades, a da criação individual, de expressão, e a de imprensa.
E se eles tiveram esse direito, e se nós temos o direito de gostar, ou não, não terão outros o direito de se indignar e odiar?
O problema é que nós não estamos sequer a ver o mesmo filme. A reacção islâmica aos cartoons nórdicos foi ignorante e bárbara - pondo no mesmo saco autores, jornalistas, dinarmarqueses, europeus, ocidentais e partindo para a violência, para o saque, para a destruição, para as ameaças, para os assassínios e cabeças a prémio.
Uma reacção que não foi orgânica, foi orquestrada, dirigida por uma minoria elitista e fundamentalista, pelos apocaliptícos líderes religiosos extremistas
Foi também, fruto de um tempo que não é o nosso, de um ritmo ideológico que de modo algum pudermos tentar julgar ou compreender com frases feitas.
Mas foi, sobretudo, o caldo que entornou, fruto da tensão máxima da qual cada vez mais este mundo se alimenta. O mundo de Bush que ostenta e joga com a vida dos outros, lá longe. Que reprime, que mata, que humilha com brincadeiras de soldados.
Ao mínimo sinal, o caldo entorna. O jogo vira para onde menos se espera.
E este é o sinal dos tempos, que nós, aqui à beira mar plantados, um dia vamos ter que nos confrontar com. Para já, devido às inconcebíveis posições de Freitas do Amaral José Sócrates, vamos recebendo elogios da diplomacia iraniana. Não podia ser pior, esta triste dupla lusa.
Com posições medrosas, incoerentes e sobretudo, muito pouco dignas para um país laico que se diz democrático e que se quer (?) afirmar na União Europeia, só nos envergonhamos perante o mundo racional que ainda resta, fora do eixo fundamentalista norte-americano e islâmico.
Mais valia estar calado. Como o Pelé.
Manuel Castro